02 dezembro 2010

sistema digestório

a carne perfumada, o sol,
o rio marrom, as bicicletas na calçada,
quarta-feira, as mulatas,
as vitrines, as ruas sem saída,
o asfalto, as nuvens densas
e brancas, as curvas,
uma pontada na cabeça

as cartas de rilke, um poema
da hilda, um suco de abacaxi 
com hortelã na padaria da 
esquina
e um salgado morno, menos 3
reais, não mais infeliz,


("mais com menos sempre dá menos"
, somava ana lúcia na sétima série)



"onde fica a rua? dez anos
depois me lembro de você,
eu sou o, ah! tudo bem não
se lembrar, apesar de me
tratar como um velho

conhecido 

maço de free sobre tua mesa,
você diz que está terminando
mais um trabalho que "já se pas
saram 27 anos desde a primeira 
pesquisa","quase minha idade", 
penso. "não saio mais daqui", 
diz e sorri. quanto a mim "não 
trabalhei mais desde a época 
que aprendi que a vida não é 
banco imobiliário. "ótimo então!",  
um de nós fala e antes de nos 
despedirmos com um aperto de mão 

, no istmo: "por favor, assine aqui", 

agradeço. "minhas  férias  começam 

dia 12, ligue dia 15,  
a fátima o atenderá"

aproveito a deixa,
desço as escadas,
o cachorro já não
está mais, percebo,


um motorista de ambulância, um policial
a paisana, um cobrador, "óuuuuu  pico
léééééééééé"! uma mãe adolescente, uma 
enfermeira no ponto do circular,o cara
de terno quem sabe um advogado, 
estudantes de branco no banco
da praça, um trabalhador de uniforme
abóbora dormindo depois do almoço, uma
mulher com uma sacola de compras, um
tipo malandro assobia, uma atendente
de consultório dentário atravessando
a ponte, 47 vendedoras numa loja de
sapatos, uma família no carro, um pai
levando o filho para a escola, uma
grávida, taxistas, um casal do século XX
descendo do ônibus, as costas nuas de
uma morena apressada, um homem 
fumando em frente a um restaurante,


& a minha inexistência,
invisibilidade e solidão


que amo tanto

e a lama
asfáltica


carecas, calvos, cabeludos, loiros,
morenos, perplexos, deprimidos,
motivados, risonhos, machos, ruivos,
afeminados, gays, lésbicas, exibicionistas,
misóginos, loucos, malucos, dependentes,
trapaceiros, inocentes, indecifráveis,
brancos, pretos, cores, muitas cores
e listras, horizontes e prédios,
espelhos, aromas, fumaças, cheiro
de batom, sabores, um resto de sorvete
derrete na calçada, dois mendigos,
queijos, filas, pingentes, relógios,
celulares, troca de olhares, óculos
escuros, gravatas, jóias, desempregados,
sandálias, cães, aviões, cabelos
brancos, helicópteros, jornais,
sons, placas, avenidas, a água escorre
no meio-fio, muros descascados com
trepadeiras, jardins coloridos, praças
refrigeradas, buzinas e búzios, anúncios


onde estão os poetas?

os poetas são seres


invisíveis &  sós 

 inexistem em
 existências
silenciosas

nestes tempos de


banda larga e carros sem embreagem


poetas


que amo tanto por não saber


quem são


nunca estive ou vi
um ou uma poeta


ou aquele
que finge 

completamente

é tudo
menos
poeta


é a própria poesia
tudo menos poesia 

& até a poesia
pode não ser

poesia e o próprio
poeta ser poesia


um cachorro dormindo na escada,
um jornal na lata 
de luxo, um
pedaço de 
plástico 
descendo o
rio sapucaí, uma moto 
quebrada, cheiro de coisa 
morta, um guarda 
chuva esgualepado, uma
loja de sapatos, picolé de limão, uma banca 
de revistas, carros do ano que vem, um ônibus
 chega de varginha, indo é meio-dia e é como

se o estômago da cidade roncasse,

o barulho aumenta, o centro agita
moças coradas de cabelo alisado,
vendedores de tudo e qualquer coisa,
sapatos de bico fino, flyers, saltos,
saias, pichações, calças que delineam
bundas, homens com camisa de times
de futebol, pedintes, um casal se
despedindo na platoforma b5


mercúrio em capricórnio


estátuas nuas, esquinas, aluga-se,
hotel, "proibido andar de bicicleta na
rodoviária", "rock the casbah" na FM
, garotas arrecadando doações para
o hospital do câncer, o cobrador,

passagens para

paisagens, casinhas no meio 
do mato, chaminés, imagino 
fogões de lenha, cafés e bolo 
de fubá, pastos e criações,


o ônibus freia


psiiiiiiiitchuuuuuuuuuuuuuu


uma família entra


16h


hora de digerir a vida para comê-la


de novo até que um dia qualquer ela


como uma jibóia decida comer o que


restar de humano e largar a poesia


como ossos que se chupam




ou recolha as roupas do varal porque vai chover





itajubá, 2 de dezembro, 2010

Um comentário:

Marília disse...

E um dia sem paciência pensei que a vida era chata. Aprendi a digeri-la conforme o gosto e cada passo andado, não mais pressa, observe absorvendo objetos ângulos perspectivas, poetas perdidos transeuntes desconhecidos, talvez quando paramos pra cuspir alguma coisa o chão se torne multicolorido e sim é onde encontramos poetas transcendentais do mundo que corre sem olhar os detalhes...